Na sua resposta à minha última postagem, o John (Pallister!) cita um artigo interessante de John Perry que dá evidência de nem Lutero nem Calvino terem acreditado na inerrância bíblica, no sentido em que esta é geralmente entendida hoje. Sobre Lutero não comento: já muitas pessoas, que em outras matérias o respeitam muitíssimo, encontraram incoerências deste tipo na sua obra.
Em relação com Calvino, devo dizer que alguma admissão que ele faça, de um texto bíblico ser menos do que «inerrante», além de ser extremamente rara, retira pouco da avaliação geral que o reformador faz das Escrituras como puras e perfeitas.
Por exemplo, o artigo de Perry só cita um exemplo relacionado com Calvino. Cita o seu comentário sobre Mateus 2:1-6, em que o reformador diz que a «estrela» que conduziu os magos a Jesus deve ter sido um cometa. Diz que não há impropriedade no facto de Mateus, que usa a linguagem popular, o chamar incorrectamente uma estrela.
Este não é um problema no texto da Bíblia que cause problemas aos que defendem a inerrância hoje, uma vez que eles admitem que Deus Se comunica algumas vezes em linguagem popular, fazendo descrições da natureza com base na observação («Declaração de Chicago sobre a Inerrância da Bíblia», Artigo XIII). Na minha opinião Calvino teria sido mais fiel ao seu próprio princípio se não tivesse usado aqui a palavra «incorrectamente». Não havia na sua época um debate aceso sobre a questão da inerrância que o obrigasse a escolher uma palavra melhor neste ponto! Mas dizer, como alguns (não incluindo Perry, que de facto não o diz) que há muitas passagens deste tipo em Calvino seria um exagero imperdoável. Dizer que Calvino tem um conceito de inspiração ou autoridade que admita uma margem de erro na Bíblia é também completamente falso.
Já ouvi dizer, por exemplo, que Calvino negava que Pedro tivesse sido o autor de 2 Pedro. De facto o que ele diz sobre o assunto é o seguinte:
«Se for recebida como canônica, temos que admitir Pedro como o seu autor, uma vez que tem o seu nome inscrito, e ele também testemunha que viveu com Cristo: e teria sido uma ficção indigna de um ministro de Cristo, ter-se apresentado como outro indivíduo. Daí concluo que deve ter procedido de Pedro, não no sentido de ele próprio a ter escrito, mas que alguns dos seus discípulos puseram em forma escrita, por ordem dele, aquelas coisas que a necessidade dos tempos exigiam. Porque é provável que já estivesse numa idade muito avançada, porque ele próprio diz que está perto do fim» (Comentário sobre II Pedro).
Haverá algum «inerrantista» de hoje que não aceite, pelo menos como princípio, este tipo de raciocínio cuidadoso?
Calvino também acha que Mateus 27:9 devia citar o nome do profeta Zacarias e não o de Jeremias. Mas não diz se é um problema do texto original – ou se é um problema textual surgido depois. Com uma exemplar humildade afirma que não sabe como é que o nome de Jeremias se introduziu aqui.
O exegeta sério de todos os tempos, antes e depois de ter sido inventada a palavra «inerrante», sabe muito bem que numa determinada altura surgem aparentes discrepâncias (as que encontro pessoalmente são poucas e pequenas) que não conseguimos resolver. E que a nossa maior sabedoria nesses casos não é abandonar uma doutrina que a própria Bíblia ensina. É dizer: «neste caso, não sei»!.
20 outubro 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário