26 dezembro 2009

UM ILUSTRE CALDENSE QUE NÂO QUERIA PROTAGONISMOS.

Desde os primeiros dias em Caldas da Rainha notámos que se sentava no último banco do salão de cultos, um homem já idoso com ar manso mas, de certa maneira, distinto. Perguntámos aos líderes da igreja quem era e respondiam, com uma certa ternura, «é o Dr. Moreira». Nas primeiras conversas que nós tivemos com ele, falou no pai: «o meu pai era pastor e missionário». Pôs-se à disposição para nos dar consultas gratuitas quando precisássemos.
Tão pouco dado a abrir-se, falar publicamente, ou dizer qualquer coisa a respeito de si próprio, o Dr. Moreira só depois de algum tempo confirmou aquilo que eu já estava a imaginar – que era filho do falecido Pastor Eduardo Moreira, distinto autor evangélico e antigo director da Aliança Evangélica. O Dr. Ernesto tinha sido colega de curso de Miguel Torga em Coimbra. Percebi que o Dr. Ernesto tinha vindo para Caldas da Rainha em 1946 – 10 anos antes da fundação da Igreja Baptista - e que, sendo membro da Igreja Lusitana em Lisboa, nunca se tinha integrado nela. Mas frequentava os cultos e ajudava financeiramente .... e dava as suas consultas gratuitas a pastores e familiares no Montepio, de que era director havia longa data.
Quanto a falar publicamente na igreja, era escusado pedir-lhe fosse o que fosse... dizia que não gostava de protagonismos.
Numa altura veio viver connosco uma amiga moçambicana idosa que tinha ajudado a criar os nossos filhos em Coimbra. Passou bastante tempo connosco em casa, como se fosse uma avó. Já tínhamos ganho alguma confiança com o Dr. Moreira e perguntámos se, indo de boleia no nosso carro, podia ir à casa ver a D. Angelina que tinha já muita falta de mobilidade (embora tivesse uns bons anos a menos do que o Dr. Moreira!). Aceitou sem hesitar e, depois de ver os exames, olhou para ela e, com ar muito sério, disse: «a sua coluna está uma vergonha!». Mas ajudou a aliviar de alguma forma as suas dores e, sobretudo, deu-lhe apoio psicológico.
No nosso tempo aqui o Dr. Moreira concluiu o seu projecto de fundar um importante Lar de Idosos na cidade, foi condecorado pelo Presidente da República e uma rua da cidade recebeu o seu nome .... ainda em vida dele!
Com base nas frequentes queixas de pessoas que saíram da igreja, o Dr. Moreira, que tanto nos ajudara e apoiara, convenceu-se que nós não devíamos ser as pessoas certas para o ministério pastoral aqui. Creio que foi com esta preocupação, e com a séria convicção de que eu estava a prejudicar a minha saúde, que um dia disse, no consultório, com frontalidade mas com imenso tacto, que talvez fosse melhor nós pensarmos numa mudança de campo. E lá, no consultório dele, descontrolei-me, dizendo bem alto que não estava em Caldas por vontade própria, mas por convicção de que era Deus que me tinha chamado! Não sei se o Dr. Ernesto se identificava com esse tipo de sentimento: os seus dons eram mais humanitários do que proféticos e talvez esse tipo de convicção lhe soasse um tanto descabida. O facto é que passou a congregar-se com o grupo que saiu da igreja, recebendo muito apoio dalguns deles (muito mais de facto do que nós lhe poderíamos ter dado).
O funeral do Dr. Ernesto foi num dia quente, em Agosto de 2005, quando já completara os 94 anos. Estive presente e falei no cemitério, como também falou um colega que estava a pastorear o grupo dissidente. Uma familiar do Dr. Ernesto, numa certa altura, achou que o meu colega estava a ser longo demais e sugeriu que terminasse a sua intervenção!
O número relativamente pequeno de pessoas presentes não parecia corresponder de modo nenhum à envergadura do trabalho desta figura distinta das Caldas, nem ao seu carácter cristão, humilde e gracioso, que marcaram a vida de tantos, especialmente das classes sociais mais carenciadas, independentemente de pertencerem a uma igreja ou não.

12 dezembro 2009

O ALENTEJANO E O SEU VOLKSWAGEN AMARELO





O alentejano vinha da área de Chança. Era já membro da igreja de Caldas da Rainha há alguns anos quando chegámos aqui: até havia uma acta de uma reunião da igreja que tinha sido secretariada por ele. A sua mulher também era membro da igreja e tinham um filho jovem, um adolescente e uma menina pequena.

O alentejano tinha infelizmente o vício do álcool. Quem tem experiência desse problema sabe como é: ele era dócil e humilde quando não tinha bebido, pedia repetidamente perdão ao Senhor, com lágrimas nos olhos.... mas, depois, caía novamente. E quem o via assim não conseguia compreender as frequentes cenas de violência que surgiam em casa quando ele estava sob a influência do álcool.

De acordo com os nossos princípios, aconselhámos o casal a não encarar o divórcio como a solução para o seu problema. Mas vários períodos de separação teve que haver – para bem da esposa e dos filhos – a título mais imediato (e também dele porque depois se sentia muito culpado!)..

O Volkswagen amarelo do nosso amigo já tinha bastantes anos. Mas ele cuidava-o bem, dentro das limitações da sua situação financeira dificílima.

Houve um período em que, estando separado da sua família, pela razão habitual,
o alentejano não tinha a possibilidade de ir para a sua terra. Resolveu dormir no carro, à frente da sua casa, durante várias semanas. Ao menos assim podia ver a família, dizia ele. Mas os vizinhos comentavam! Talvez alguns tenham pensado que era falta de amor da parte da esposa deixá-lo assim. De facto não sei se realmente pensavam isso – mas ela, a mulher do alentejano, sentia que era assim que eles pensavam. Eles não pensavam no que ela sofria quando o seu marido estava embriagado e entrava em casa! Também não gostávamos da solução que ele encontrou: infelizmente durante bastante tempo não tivemos uma melhor a propor....

...até ao dia em que nos lembrámos de propor que o alentejano fosse passar um tempo num Centro de recuperação da Remar, até porque a sua saúde estava a deteriorar. Ele aceitou esta proposta e foi com mais dois – os outros com problemas de droga – ficar num Centro perto da Serra de Lousã, e posteriormente noutro perto de Azambuja. Neste Centro ele foi estimado e conseguiram que deixasse o hábito de se ir «consolar» na tasca mais próxima. Naturalmente o Senhor o terá ajudado a ganhar força. Devido à idade (tinha cerca de 50 anos na altura), e a problemas cardíacos, não podia fazer os trabalhos duros que era hábito os utentes do Centro fazerem. Mas passou a ser «conselheiro» – os jovens tratavam-no como um tipo de pai.

O seu principal problema era que a sua mulher e filhos estavam longe e ele tinha muitas saudades deles. Ela sabia que, se fosse visotá-lo, ele quereria voltar logo com eles - e voltar com eles poderia facilmente significar voltar ao álcool.

Depois de bastante tempo, num sábado, a sua esposa ganhou finalmente coragem para lhe prometer que o iriam visitar no Centro. Os responsáveis do Centro disseram que esta notícia deu uma alegria tão grande ao nosso amigo alentejano que ele não a podia conter. E, durante a noite, morreu de ataque cardíaco, feliz, pensando na sua família que iria voltar a ver!

Creio sinceramente que nessa altura o alentejano se estava a manter-se livre do vício. E não duvido da fé simples que ele professava antes – e que agora aplicava à sua vida com mais coerência. Mas a sua família – a esposa sobretudo – parecem ter tido sentimentos de culpa, depois da sua morte, com os quais não conseguiram lidar. Apesar de nós lhes termos dito repetidamente que estavam a fazer, na situação, aquilo que podiam.....