10 fevereiro 2011

Crises, Deus e o nosso sacerdócio.....

Hoje, de manhã, na Segurança Social, tive que esperar bastante tempo antes de ser atendido sobre um assunto da nossa igreja. De certa maneira era um assunto de rotina, mas um em que as falhas do sistema informático do Serviço nos obrigaram a gastar várias horas antes de perceber nem sequer qual é que estava a ser o problema. Durante muitos anos como pastor tenho que confessar que tive dificuldade em aceitar que um «ministério pastoral» pudesse incluir a tarefa de intervir em questões deste tipo...

Então, como seria de esperar, estive uma hora a ouvir conversas do público presente sobre a crise financeira: o custo da vida - prestações do carro que não dava para pagar - subsídios de desemprego - etc., etc.

E, para me distrair, peguei no livro que tinha comigo: «Chiquinho» de Baltasar Lopes* Só que este livro também falava em crise......!

Passo a citar:
«O mês de Setembro, passados os borrifos certos por Nossa Senhora da Lapa, esteve sem um pingo de água. Com o mês de Outubro nem contar, que chuva nele é rara como âmbar grise. Nhô João Joana, de ordinário tão animado, abanava a cabeça:
- A coisa está feia....
- Deus há-de olhar para os seus filhos...»

Pensei para mim que a crise de ilhas que durante anos não receberam chuva terá sido bastante pior ainda, para quem a sofreu, do que a crise actual das economias ocidentais!

Uma personagem no livro vai «mondar o seu milho murcho» e afirma que «quando Nossenhor quer, dá milho de riba de pedra...»
Outro duvida:
«Deus quase já se esqueceu de nós..»

Acende-se a discussão:
«Cale a boca, homem sem fé! Fé em Deus é que salva a criatura.
-E se fé em Deus não nos der chuva?
-Destino, homem...
Chico Zepa revoltou-se:
-Qual destino, velho! Destino é cair da rocha...
-Destino não é só cair de rocha. Trazemos o nosso destino desde que abrimos os olhos ao Sol.
-Não acredito. Nós é que fazemos o nosso destino consoante o que pensarmos na nossa cabeça...».

Onde me situo? - penso eu. Sou um «crente» corajoso mas ingénuo que tenta o «milagre» de obter milho de cima da pedra? Ou cruzo os braços perante um Destino que parece mais poderoso do que o próprio Deus? Ou envolvo-me numa luta destemida - típica do humanista que julga que é só ele que faz o seu próprio destino?

E onde é que me situo, hoje, perante as queixas e o pessimismo dos que estão na fila na Segurança Social?

A verdade é que tudo isto me ajudou a pensar num tema que andamos a tratar nos cultos na nossa igreja. O tema do sacerdócio. O sacerdote aarónico era chamado por Deus para ser diferente. Mas ao mesmo tempo era estranhamente fraco e parecido com o resto do povo. Da mesma maneira que eu sofro muitos dos problemas que afligem os outros na fila da Segurança Social..... mas tenho também uma esperança claramente diferente.... e provisões de Deus que entretanto me ajudam a ter o suficiente. Posso e devo compreender as outras pessoas e orar por elas. E posso procurar as melhores maneiras de dar testemunho.

Quando fui chamado para tratar do assunto que me levava ao Serviço, reparei que Deus me estava a dar uma boa oportunidade de conquistar alguma simpatia e apoio das funcionárias. A nossa relação com esse Serviço ultimamente tem vindo claramente a melhorar. No mesmo lugar anteriormente, sem ser pela nossa culpa, tínham surgido tomadas de posição desfavoráveis às duas Associações Religiosas que represento.

Tive que pensar que muitos dos meus irmãos exercem o seu «ministério sacerdotal» em serviços parecidos com este. E que Deus os pode usar entre os seus colegas, numa multidão de questões pequenas parecidas com esta.

Tive que pensar que o meu tempo hoje não foi gasto em vão: nem o tempo a ouvir as conversas de costume sobre a crise, nem a leitura de Baltasar Lopes, nem as diligências relacionadas com o assunto da igreja!


*ilustre romancista caboverdiano, já falecido, e tio de um dos primeiros estudantes e conselheiros do GBU - o nosso irmão, Dr.Jorge Pinheiro!