16 novembro 2007

Os 85 anos Os 85 anos de José Saramago e a história de uma maçaroca

Hoje, 16 de Novembro de 2007, o autor e Prémio Nobel, José Saramago, celebra os seus 85 anos. Há dias li a última obra publicada por Saramago, em Outubro de 2006, “As Pequenas Memórias”, que trata essencialmente da infância e adolescência do autor.

Achei a obra agradável na abordagem e transparente e honesta perante os familares e amigos que povoaram o mundo do pequeno José. Retrata o ambiente ribatejano da infância e o lisboeta, do período a seguir, de uma forma cativante.

Chamou-me a atenção de maneira especial a história de uma maçaroca.

Na penúltima página do livro, Saramago fala de um primo que faleceu jovem, chamado José Dinis. Lembra-se de momentos deliciosos em que comeram uma melancia juntos na borda do Tejo. Mas lembra-se, também, de um momento em que foi desleal com o José Dinis. E o problema foi por causa de uma maçaroca.

Passo a citar o episódio por extenso:

«Andávamos com a tia Maria Elvira no rabisco do milho, cada qual no seu eito, de sacola ao pescoço, a recolher as maçarocas que por desatenção tivessem ficado nas canoilas quando da apanha geral, e eis que vejo uma maçaroca enorme no eito do José Dinis e me calo para ver se ele passava sem dar por ela. Quando, vítima da sua pequena estatura, seguiu adiante, fui eu lá e arranquei-a. A fúria do pobre espoliado era digno de ver-se, mas a tia Maria Elvira e outros mais velhos que estavam perto deram-me razão, ele que a tivesse visto, eu não lha tinha tirado. Estavam enganados. Se eu fosse generoso ter-lhe-ia dado a maçaroca ou então tinha-lhe dito simplesmente: ”José Dinis, olha o que está aí à tua frente”. A culpa foi da constante rivalidade em que vivíamos, mas eu suspeito que no dia do Juízo Final, quando se puserem na balança as minhas boas e más acções,será o peso daquela maçaroca que me precipitará no inferno....»

Quando um autor declaradamente ateu fala sobre o Juízo Final, a nossa tendência como cristãos é de supor que deve a estar a ironizar!

Mas, pessoalmente, não achei nada irónico este pequeno relato. Na minha leitura Saramago recrimina-se severamente por não ter sido generoso com o primo. Culpa a rivalidade existente entre os primos pelo que sucedeu – mas reconhece que tirou a maçaroca numa atitude desenfreadamente egoista. O «peso» da maçaroca é muito grande porque tem a ver com uma culpa real que sente ... e que não pode reparar.

Comecei a pesar no número de «maçarocas» que existiram na minha infância e juventude: situações de ambição desenfreada em que colegas da escola, familiares e mesmo os meus pais sofreram por causa de ambições minhas que senti a necessidade de satisfazer à sua custa. Se eu quisesse reparar estas faltas não tinha nada a fazer. Não digo que uma «maçaroca» isolada nos precipite para o inferno: mas cada uma delas simboliza algo muito lamentável dentro do nosso espírito que bem queríamos erradicar –ou expiar – de alguma forma. Todo o nosso sentir, pensar e agir sofre do contágio fatal do pecado e o resultado justo é a nossa condenação eterna.

No meu caso, conheci desde a infância a doutrina bíblica que afirma que não podemos fazer nada para expiar nem as nossas más obras nem as «boas». Porque as que consideramos boas também ofendem o nosso Deus: as nossas «justiças», nas palavras de Isaías, são «trapos de imundícia».

A imagem do Juízo Final que Saramago apresenta, aprendido do catolicismo,é um em que, pelo menos em princípio, pode haver boas obras a compensar as más. Alguém poderia, supõe-se, ter boas suficientes para que o Juiz ficasse satisfeito.

Ensinaram-me que segundo a Bíblia, não é assim. Mesmo alguém que só tivesse obras que os homens consideram boas seria condenado.

A nossa dificuldade é reconhecer que nenhuma obra nossa é aceitável perante o Juíz. Nas diversas religiões, como Emil Brunner observa, «o homem é poupado da humilhação final de saber que, em vez dele, o mediador é quem deve levar o castigo. A esse jugo ele não precisa submeter-se. Ele não é deixado totalmente nu». No cristianismo, em contrapartida, o homem tem que declarar que não pode salvar-se a si próprio.

O Evangelho anuncia que Cristo, o Único que não conheceu pecado, foi feito «pecado» por nós (isso é pagou a pena dos nossos pecados), para que nós fóssemos feitos justiça de Deus. Nas palavras de Cranfield, comentando Romanos 3:25, «Deus... teve o propósito de dirigir contra seu próprio ser, na pessoa do Seu Filho, o peso total dessa ira justa a qual eles mereciam».

Assim podemos nós, com todas as nossas «maçarocas» - e mesmo com as «boas obras» que, orgulhosamente, julgamos que Deus vai apreciar – ser declarados justos, como se nunca tivéssemos pecado, e perdoados.

Aprecio muito este momento de transparência no relato de Saramago. Acredito que a ideia do Juízo Final ainda tem peso para ele. Gostava que ele conhecesse Jesus de maneira a receber o perdão dos pecados (tanto das «maçarocas» como das coisas que parecem ser melhores!)da sua vida –como eu O vim a conhecer.

Quando deixamos que Jesus faça a Sua vontade em nós, até conseguimos descer um pouco no nosso sentido de importância e dar a «maçaroca» ao «José Dinis»!

09 novembro 2007

Obrigado pelas vossas reacções

Além de outras já recebidas, vieram boas ideias sobre «O Incêndio» do André Campos e do Térsio Vieira sobre «Transfiguração... e Discípulos Confusos». Muito obrigado. Agora passamos a partilhar algumas coisas sobre a Cruz de Cristo!
A intenção era que o blog estivesse a produzir alguma coisa mais frequente: mas os dias passam e as pressões são bastantes! Também para mim é preciso formar novos hábitos: e estar disponível para um tipo de comunicação mais informal do que aquela a que estou habituado.
Muitas vezes aquilo que queremos transmitir é teológico - e isso parece requerer um estilo muito formal e um tanto abstracto. Mas a teologia na realidade é o que estamos a viver: é o nosso "dia a dia" e faz contacto de alguma maneira com todas as nossas ocupações. Daí acho que devemos tentar dizer as coisas de uma maneira um pouco menos formal - como quem está sentado à volta de uma mesa num centro de L'Abri - ou no Canto da Rola, por exemplo.
Esta semana lembrei-me de Martinho Lutero. Foi na altura em que estava a preparar e a dar as aulas no Seminário (Baptista de Queluz) sobre a Cruz de Cristo. Antes da sua conversão Lutero, um frade dedicadíssimo, tentou viver de maneira a ganhar o favor de um Deus justo. Mas isto o levou a odiar Deus, que condenava o homem, com justiça, pela Sua lei e pelo Seu Evangelho.
Quando os olhos de Lutero foram abertos, ele viu que a justiça de Deus, em Romanos 1:17, não era a justiça pela qual nos condena mas a justiça pela qual nos justifica mediante a fé.
Lutero vivia o dilema de se interrogar, com angústia, como é que alguma vez um Deus justo o podia salvar. Como é que um Deus justo pode salvar alguém, sem trair a Sua própria justiça?
A nossa época é diferente: os pensadores dos séculos XX e XXI rejeitam a ideia do Deus da Bíblia, com alguma sarcasmo e normalmente sem angústia nenhuma, perguntando: «como é que um Deus de amor pode condenar alguém, sem trair o Seu próprio amor»?
Quem, então, estava mais bem situado para poder compreender a mensagem de Romanos 1:17 e 3:21-31, nós ou Lutero?
Tenho uma turma entusiasta e simpática no Seminário - embora muitos lutem com bastantes dificuldades para terem o tempo necessário para estudar (empregos, família, igreja...). Fiz com eles a mesma experiência que já fizera com outras em outros anos. Perguntei qual é a distinção em português entre o verbo «expiar» e o verbo «propiciar». Sei que não são termos de uso comum: mesmo no lar mais piedoso e conservador os filhos que podem ter tido que «expiar» algumas das suas faltas e «propiciar» os seus pais irados, provavelmente não foram ensinados a usar essas palavras!
Mais uma vez, a turma não soube responder. Não levei a mal... já estou habituado!
Expliquei que nós expiamos pecados quando nós, ou alguém, faz uma oferta para de algum modo os cancelar e que propiciamos (aplacamos) a ira de uma pessoa quando lhe oferecemos algo com esse propósito. O complemento directo do verbo «expiar» é uma ofensa ou pecado: o complemento directo do verbo «propiciar» é uma pessoa - a ofendida e irada.
Romanos 3:25 fala em propiciação: é um texto absolutamente central para a compreensão do Evangelho. Não há versões posteriores à de Almeida que tenham conseguido encontrar uma palavra mais actual ou simples para traduzir a mesma ideia. Então isto obriga-nos mesmo a aprender a palavra!
Num sentido todos nós compreendemos o Evangelho: noutro sentido parece que nenhum de nós o compreendeu bem - porque não soube destrinçar adequadamente esta frase vital da exposição que Paulo faz do significado da morte de Cristo. Sem querer começámos a absorver ideias humanistas ou da «Nova Era» da salvação como libertação daquilo que nos faz sentir mal - em vez de ser o que a Bíblia diz que é, o recurso que um Deus santo e justo providenciou para que a sua própria justiça pudesse ser satisfeita - ao mesmo tempo que Ele justificava e salvava pecadores que não o mereciam.
Senti que a aula foi bem recebida: pouco mais foi do que uma exposição de um capítulo excelente do livro «A Cruz de Cristo» de John Stott (ed. Vida). Não nego a necessidade que temos de tentar actualizar a linguagem usada para expor o Evangelho. Mas tenho o receio que as simplificações habituais que passámos a usar nas nossas igrejas nem sequer captam o sentido essencial das palavras usadas no original e nas traduções mais fiéis.
Afinal podemos estar a anunciar um «Evangelho» dos nossos púlpitos que, biblicamente, trai o sentido profundo que, na Bíblia, está encerrado na mensagem que os apóstolos de Jesus anunciaram.
Era mais ou menos nesta linha de pensamento que queria continuar no blog. Acham que é muito pesado? Para mim o assunto é apaixonante. E espero «apanhar» pelo menos alguns «curiosos» que sintam - ou que possam vir a sentir - algo desta mesma paixão.

Aguardo reacções,
Alan Pallister (9/11/2007).