22 setembro 2009

Quando faltam palavras....

«Lé, lé, pá».
Normalmente era tudo o que o nosso amigo, Sr. C., conseguia dizer, depois de um AVC severo que interrompeu a sua vida profissional activa como dono de uma pedreira.
A seguir a essa doença, a sua esposa passou por muitas dificuldades e, através delas e pelo testemunho de vizinhos crentes, chegou à fé em Cristo, passando a ser membro da igreja no tempo do pastor que me antecedeu. Na altura, dois dos seus filhos também fizeram profissão de fé em Cristo. E desde então ela continua incansável no seu testemunho a familiares e amigos.
Uma das alegrias dos meus primeiros anos de ministério pastoral foi a possibilidade de dirigir pequenas reuniões em lares, na Dagorda de Óbidos e na Lourinhã, em que a principal iniciativa em convidar pessoas para participar era dessa irmã.
O marido era acompanhante nas viagens e, frequentemente, ao passar por algum lugar que lhe chamava a atenção ou trazia recordações, dizia: «lé, lé, pá!». Dizia-o, como é natural, com entoações diferentes, conforme a situação. A esposa era a «tradutora» que percebia se estava a falar sobre primos em segundo grau que não tinham visitado durante 11 anos ... se estava a lembrar um acidente entre um carro e uma motorizada .... ou se era só que achava bonita a cor da tinta de alguma casa! Normalmente, ela sempre chegava a compreender e a interpretar bem... não percebíamos como. Houve só uma situação ou outra em que mesmo ela teve que desistir, para grande frustração dele!
As tentativas de recuperação da fala do nosso amigo, após a sua doença, não tinham dado grandes resultados. Na questão de respeito pela palavra de Deus, e gosto de a ouvir, no entanto, não há dúvida de que deu alguns bons passos em frente.
Houve tempos em que ele teve uma atitude bastante autoritária, apesar das suas limitações.
Houve tempos em que nos surpreendia com uma variação no seu discurso: «lé, lé, pá, caraças!», por exemplo. Mas o Senhor foi fazendo a Sua obra.
Quando cantávamos nas reuniões, a sua capacidade de pronunciar as palavras melhorava. No fim de cada reunião em que ele estivesse presente era obrigatório que cantássemos o coro:
«Em tuas mãos, em tuas mãos, quero, oh Deus, me colocar em tuas mãos.....».
Isto era, segundo contava a sua esposa, com emoção, por causa de um dia em que o marido lhe estava a dizer, com uma ênfase especial: «lé, lé, pá!». Ela teve alguma dificuldade em compreender a razão de tanto entusiasmo. Mas, a seguir, o marido começou a cantar: «Em tuas mãos, em tuas mãos....» E conseguiu chegar ao fim do coro pronunciando bem todas as palavras! No fim disso foram os dois que choraram e agradeceram ao Senhor!
Há uns 5 anos este nosso irmão faleceu. No dia do seu funeral houve oportunidade para a sua esposa explicar bem alto e com toda a convicção, para largas dezenas de assistentes, a maioria de fora do nosso meio, aquilo que o Senhor tinha feito nas suas vidas.
Depois no céu, sem qualquer dúvida, não hão-de faltar palavras!
(mais um «retalho da vida de um pastor» de Alan Pallister)

16 setembro 2009

«EU ACHO QUE PAULO NÃO TINHA RAZÃO QUANDO ACHAVA QUE DEUS ACHAVA QUE ERA DESSA MANEIRA, PORQUE EU ACHO QUE DEUS ACHA QUE É ASSIM....»

De 1971 a 1973 estudei teologia na Faculdade em Cambridge. A abordagem dos professores em geral era liberal: não se considerava o texto bíblico como veículo objectivo da revelação de Deus, nem como última referência em qualquer questão (nem de «fé e prática», nem de qualquer outra). Deus na altura providenciou recursos para me ajudar – teólogos conservadores visitantes, professores mais novos ainda a fazerem os seus doutoramentos, e um leque extraordinário de livros dentro da mesma perspectiva teológica. O resultado foi que eu, e a maior parte dos meus colegas que tinham convicções semelhantes, fomos capazes de enfrentar os desafios e manter-nos numa linha de respeito e submissão às Escrituras como Palavra de Deus.
O que eu não contava era, 20 anos depois, vir pastorear uma pequena igreja baptista em Portugal e encontrar o mesmo tipo de raciocínio liberal em alguns membros da congregação! E estes não tinham os recursos académicos de que os professores de Cambridge dispunham.
Havia na igreja, por exemplo, quem citasse as posições de Paulo ou de João como sendo «opiniões» («os apóstolos achavam....»): e quem assim citava a sua própria opinião («ele achava»), que podia ser diferente e, sendo mais actual, teria até vantagem sobre as dos apóstolos.
Adoptei desde cedo o método expositivo, tratando as passagens dos livros da Bíblia por ordem e tentando não omitir aquilo que podia parecer menos oportuno. Surpreendeu-me agradavelmente o número de ocasiões em que o texto bíblico, previamente escolhido, tinha elementos muito concretos de ensino para as necessidades que a congregação estava a enfrentar. Muitas vezes falava para mim primeiro enquanto me estava a preparar, corrigindo erros e dando melhores orientações para a minha vida.
Algumas vezes podia detectar os pontos de contacto com os problemas da congregação antecipadamente, durante a preparação das mensagens. Mas muitas vezes era só depois de ter pregado que percebia a relevância daquilo que Deus tinha colocado à nossa frente nesse dia. Podia até dar-se o caso de eu pensar que a relevância da passagem tinha a ver com determinadas situações na vida de algumas pessoas – mas, depois, descobrir que de facto estava a falar muito mais para outras, nas quais não tinha pensado.
Não será preciso acrescentar que uma das acusações mais frequentes que tive de enfrentar era a de estar a escolher os temas e direccionar as mensagens para atingir membros da congregação!
Mas, algumas vezes, o tema era, por exemplo, o facto de a salvação ser inteiramente da iniciativa da graça divina, não tendo os nossos méritos e esforços qualquer valor para a obtermos. Tema bastante fundamental no que diz respeito às nossa convicções evangélicas! Só que depois alguém na congregação achava que era muito importante aquilo que nós fazíamos: e que não podíamos atribuir a salvação só a Deus.
Aconteceu mais do que uma vez, depois de eu ter exposto a passagem salientando o seu ponto principal, que o dirigente do culto, antes de anunciar o hino final, em duas ou três frases bem pensadas e elaboradas, contradisse nitidamente o ponto principal da passagem que tinha sido exposta. Mas, como a pessoa estava na liderança da igreja há anos, e eu era novo em comparação, tinha que me calar, não chamando a atenção à congregação para a contradição que lhe tinha sido transmitida!
(6ª postagem na série «Retalhos da Vida de um Pastor», de Alan Pallister)

09 setembro 2009

Justiça e misericórdia.... num blog?

Ao escrever reminiscências, tenho consciência de alguns riscos. Um é descrever, situações que me magoaram bastante na altura, de uma forma que transmita algum tipo de ressentimento contra as pessoas. Mesmo quinze anos depois! Reflectindo sobre este risco, cheguei à conclusão de que posso minimizá-lo se obedecer a algumas regras.

Uma é não descrever episódios de uma forma que implique críticas de qualquer pessoa que ainda faz parte da igreja. A não ser que seja eu essa pessoa! Essas pessoas não são muitas – é verdade. Mas se ainda estão na igreja, depois de tudo o que aconteceu, é porque Deus lhes deu uma persistência e uma paciência extraordinárias. Qualquer crítica pontual teria que ser precedida, antes de mais nada, por um reconhecimento desse facto.

Outra é que estas reflexões sejam ditadas por um espírito de justiça e misericórdia.

Os episódios estão a ser seleccionados com algum cuidado. E, em cada episódio, pode haver alguns aspectos que não partilho com o receio de prejudicar alguém injustamente.

Mesmo assim, é óbvio que pode acontecer algo daquilo que estou a partilhar vir ao conhecimento de alguém que esteve envolvido nos conflitos, que saiu da igreja ou que foi disciplinado. Não receio isto, porque sei que estou a ser justo e sei que o desejo mais profundo que sinto em relação com essa pessoa é que possa reunir as condições para ser reconciliada.

É que acredito de coração na doutrina da perseverança dos santos! Ninguém que de verdade recebeu a salvação, pelos méritos de Cristo na cruz, perderá essa salvação. Deus fará tudo para trazer o Seu «desterrado» de volta (cf. 2 Samuel 14:14).

Não seria gratificante se um simples blog, ou algum comentário feito sobre ele, mesmo que primeiro fizesse doer, se viesse a tornar numa pequena parte deste processo de reconciliação? (A.P.)

06 setembro 2009

O PASTOR COM O CASACO AOS QUADRADOS...

Não, não vou tratar do filme «O Rapaz com o Pijama às Riscas».....
Era mesmo um casaco. Grosso, verde escuro, e com uns quadrados amarelos. Não me lembro se me foi oferecido, ou se o tinha comprado numa loja de roupa em segunda mão («charity shop») em Inglaterra.
Algumas pessoas na congregação, nos domingos de manhã, começaram a distrair-se, dando menos tempo a ouvir o sermão e mais a observar, com atitude crítica, o casaco do pastor. Não ousaram dizer directamente que não gostavam do casaco: mas a notícia chegou até a minha esposa... e não sei a quantas pessoas antes dela!
Até ao dia em que dois irmãos idosos resolveram fazer-me uma surpresa. Um deles nunca veio a ser membro da igreja: mas foi um bom amigo que veio a falecer uns anos depois. Outro ainda era membro de outra igreja: depois mudou para a nossa e ainda é vivo – com 92 anos.
Vieram dizer-me que tinham uma pessoa que estavam a evangelizar: precisavam da minha ajuda para falar com a pessoa. Com todo o cuidado marcaram o lugar e a hora do nosso encontro. Lá cheguei na hora combinada: fomos muito pontuais os três. E, para minha surpresa, estávamos ao pé de uma boa loja de roupas!
Entrámos e contava encontrar, dentro da loja, o amigo que precisava de ser evangelizado. Mas disseram logo que o que queriam realmente era comprar-me um casaco!
Em pouco tempo, apreciando os preços, vimos que um fato seria bastante económico e seria uma melhor opção. Compraram-me um fato bonito e despediram-se: «Até domingo!». Quando é que eu alguma vez, com as limitações financeiras que tinha com a minha família, teria resolvido gastar esse valor na compra de um fato novo?
E outra coisa..... Era na altura, e ainda sou, professor de Ética Cristã no Seminário Baptista. Quando surge o tema das «mentiras piedosas», não costumo dar margem para a mentira ser justificada tendo em vista as boas intenções de quem a profere. Mas nunca ganhei muita coragem para condenar a «mentira» que estes dois irmãos idosos da congregação usaram para me fazer esta preciosa oferta!