09 novembro 2007

A intenção era que o blog estivesse a produzir alguma coisa mais frequente: mas os dias passam e as pressões são bastantes! Também para mim é preciso formar novos hábitos: e estar disponível para um tipo de comunicação mais informal do que aquela a que estou habituado.
Muitas vezes aquilo que queremos transmitir é teológico - e isso parece requerer um estilo muito formal e um tanto abstracto. Mas a teologia na realidade é o que estamos a viver: é o nosso "dia a dia" e faz contacto de alguma maneira com todas as nossas ocupações. Daí acho que devemos tentar dizer as coisas de uma maneira um pouco menos formal - como quem está sentado à volta de uma mesa num centro de L'Abri - ou no Canto da Rola, por exemplo.
Esta semana lembrei-me de Martinho Lutero. Foi na altura em que estava a preparar e a dar as aulas no Seminário (Baptista de Queluz) sobre a Cruz de Cristo. Antes da sua conversão Lutero, um frade dedicadíssimo, tentou viver de maneira a ganhar o favor de um Deus justo. Mas isto o levou a odiar Deus, que condenava o homem, com justiça, pela Sua lei e pelo Seu Evangelho.
Quando os olhos de Lutero foram abertos, ele viu que a justiça de Deus, em Romanos 1:17, não era a justiça pela qual nos condena mas a justiça pela qual nos justifica mediante a fé.
Lutero vivia o dilema de se interrogar, com angústia, como é que alguma vez um Deus justo o podia salvar. Como é que um Deus justo pode salvar alguém, sem trair a Sua própria justiça?
A nossa época é diferente: os pensadores dos séculos XX e XXI rejeitam a ideia do Deus da Bíblia, com alguma sarcasmo e normalmente sem angústia nenhuma, perguntando: «como é que um Deus de amor pode condenar alguém, sem trair o Seu próprio amor»?
Quem, então, estava mais bem situado para poder compreender a mensagem de Romanos 1:17 e 3:21-31, nós ou Lutero?
Tenho uma turma entusiasta e simpática no Seminário - embora muitos lutem com bastantes dificuldades para terem o tempo necessário para estudar (empregos, família, igreja...). Fiz com eles a mesma experiência que já fizera com outras em outros anos. Perguntei qual é a distinção em português entre o verbo «expiar» e o verbo «propiciar». Sei que não são termos de uso comum: mesmo no lar mais piedoso e conservador os filhos que podem ter tido que «expiar» algumas das suas faltas e «propiciar» os seus pais irados, provavelmente não foram ensinados a usar essas palavras!
Mais uma vez, a turma não soube responder. Não levei a mal... já estou habituado!
Expliquei que nós expiamos pecados quando nós, ou alguém, faz uma oferta para de algum modo os cancelar e que propiciamos (aplacamos) a ira de uma pessoa quando lhe oferecemos algo com esse propósito. O complemento directo do verbo «expiar» é uma ofensa ou pecado: o complemento directo do verbo «propiciar» é uma pessoa - a ofendida e irada.
Romanos 3:25 fala em propiciação: é um texto absolutamente central para a compreensão do Evangelho. Não há versões posteriores à de Almeida que tenham conseguido encontrar uma palavra mais actual ou simples para traduzir a mesma ideia. Então isto obriga-nos mesmo a aprender a palavra!
Num sentido todos nós compreendemos o Evangelho: noutro sentido parece que nenhum de nós o compreendeu bem - porque não soube destrinçar adequadamente esta frase vital da exposição que Paulo faz do significado da morte de Cristo. Sem querer começámos a absorver ideias humanistas ou da «Nova Era» da salvação como libertação daquilo que nos faz sentir mal - em vez de ser o que a Bíblia diz que é, o recurso que um Deus santo e justo providenciou para que a sua própria justiça pudesse ser satisfeita - ao mesmo tempo que Ele justificava e salvava pecadores que não o mereciam.
Senti que a aula foi bem recebida: pouco mais foi do que uma exposição de um capítulo excelente do livro «A Cruz de Cristo» de John Stott (ed. Vida). Não nego a necessidade que temos de tentar actualizar a linguagem usada para expor o Evangelho. Mas tenho o receio que as simplificações habituais que passámos a usar nas nossas igrejas nem sequer captam o sentido essencial das palavras usadas no original e nas traduções mais fiéis.
Afinal podemos estar a anunciar um «Evangelho» dos nossos púlpitos que, biblicamente, trai o sentido profundo que, na Bíblia, está encerrado na mensagem que os apóstolos de Jesus anunciaram.
Era mais ou menos nesta linha de pensamento que queria continuar no blog. Acham que é muito pesado? Para mim o assunto é apaixonante. E espero «apanhar» pelo menos alguns «curiosos» que sintam - ou que possam vir a sentir - algo desta mesma paixão.

Aguardo reacções,
Alan Pallister (9/11/2007).

5 comentários:

Anónimo disse...

Muito obrigado Irmão pela sua reflexão. Por esta e pelas outras.
A versão O LIVRO tem, em Rom 3 : 25 - «...e assim anular a justa cólera de Deus contra nós.(...)». Não estará expressando correctamente a ideia de "propiciar" ? A velha Living Bible tinha : «...and to end all God's anger afainst us.(...)». Mas ainda prefiro, ( naturalmente ), a versão portuguesa. Que acha ? Com um abraço fraterno.

O Canto da Rola disse...

Agradeço esta reacção rápida e oportuna! De facto sinto que fui injusto relativamente à tradução que «O Livro» faz de «propiciar», uma vez que capta perfeitamente o facto de o objeto da propiciação ser a ira divina. Mesmo assim, acho que há uma perquena diferença: a ênfase no verbo «anular» recai no efeito enquanto a ênfase no verbo «propiciar» recai na acção.
Mas não tenho qualquer outra sugestão a dar e acho que aqui, tanto como em muitos outros aspectos, a tradução «O Livro» tem sido uma contribuição muito válida para que compreendamos melhor o sentido do texto.

Anónimo disse...

A propósito de Rom 3 : 25 leio nas nossas Bíblias portuguesas : «...para demonstrar a sua Justiça pela remissão dos pecados...». O termo correcto deveria ser «...pela REMIÇÃO dos pecados...». O mesmo em Heb 9 : 22. E passim... Vejo muito pouca gente interessada nesta dupla vocabular, que é importante.
Remissão - é executar uma remessa, um envio. É o acto de encaminhar. É desistir. É perdão, indulgência, esquecimento, generosidade. Não envolve a necessidade de um pagamento ou quitação.
Remição - É um pagamento, aquisição onerosa de um direito para se alcançar uma desobrigação. Por exemplo : "Acto de remição" de uma renda, é um documento passado quando é satisfeito de uma só vez o capital correspondente.
É este último sentido aquele que corresponde ao resgate na Cruz.

Anónimo disse...

Caro Alan: gostei de encontrar o seu blog. Interessa-me compreender melhor o sentido da Salvação, não tanto para consumo próprio, porque a imensidão dos meus erros demanda forçosamente uma Salvação da "Velha Era" e não uma versão simplificada para o homem auto-justificado do Sec XX; mas mais para tentar melhor comunicar a esse mesmo homem auto-justificado, e àquele que pensa que já tem a Salvação por ser simplesmente religioso. Desejaria simplificar, porque Jesus também o fez no seu tempo e parece-me bem o propósito de o imitar. Porém, debruçando-me sobre a questão, as dificuldades surgem como cogumelos: quando pensamos, reflectimos e estudamos o tema (e não apenas a Palavra de Deus e os textos dos por ela rigidamente formatados), há um ponto em que podemos nos opor a aceitar a noção de "a Palavra de Deus é perfeita e completa". Pois havendo sido captada e registada por homens, em diferentes eras, não será passível de conter pequenos focos de confusão que escapem à sua compreensão e à minha? Ou esses focos não serão por ser imperfeita mas apenas por ser misteriosa? Por exemplo, a mulher parece retratada como um ser propício à mentira, potencialmente falso, porém, na luta pela sobrevivência da Espécie, a monogamia remete o homem para uma posição frágil pois não tem a certeza inata de se o seu filho é fruto do seu sémen ou não. Parece que estes medos ancestrais se materializam colateralmente (como que acrescentando subliminarmente algo à vontade central de Deus) numa Bíblia escrita por homens. Sei que a evolução da compreensão de Deus é algo indemandável à dimensão individual do ser humano, porque lhe é inata uma resistência à mudança das suas convicções. Porém não fará sentido reduzir as certezas absolutas a um minimo possível? Um mínimo que inclua a vontade central de Deus, claro. A natureza e alcance da Salvação não precisa ser explicada. Uma vez perante Deus, o discurso passa a ser directo. Shalom Adonai. Rui Sousa (rsousa da gestix.com)

Anónimo disse...

Por que nao:)